Sandra Regina Mendes e Lívia Diana Rocha Magalhães

 A SUBALTERNIZAÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NAS REFORMAS EDUCACIONAIS (1960-70): DIÁLOGOS COM A MEMÓRIA 

Introdução

Este ensaio tem por objetivo situar a discussão realizada nos Anais da Associação Nacional de História (ANPUH) diante de reformas educacionais que implementaram os Estudos Sociais nos currículos, nas décadas de 1960-70, visando compreender o processo de desvalorização da História nos currículos escolares no atual contexto de implementação da reforma do ensino médio. Tudo indica que há uma memória constituída nessas reformas que continua vigente em sua atualização,  ancorada  na concepção de que a  História dever assumir um lugar de subalternação no currículo.

Nessa perspectiva, poder-se-ia dizer, nos aproximando de estudos sobre História e Memória da Educação, com base no campo da teoria da memória social e coletiva (HALBWACHS, 2004; 2006), que a memória é uma das fontes de expressão das relações construídas numa sociedade, de forma que “discutir a memória da educação pode permitir a discutir a história dos grupos e da sociedade que compõem o pensar e o fazer educacional [...]” (MAGALHÃES, 2016, p. 170).

Nesse sentido, tomando como referência as memórias coletivas oficiais, instituídas por grupos que elaboram as reformas educacionais, identifica-se uma memória de que a História poderia ser dissipada no currículo. Isso ocorreu por meio dos Estudos Sociais na Lei 5.692/1971 e, atualmente vêm sendo feito através da área de conhecimento e itinerários formativos na Lei 13.415/2017 e na Base Nacional Curricular Comum (BNCC) do atual ensino médio. E para discutir que esse não é uma tema pacífico e aceito pelos historiadores estudiosos do ensino de História, recorrer-se-á aos Anais da ANPUH (1960-1970) para demonstrar que na contramão dessa proposição há uma memória coletiva, construída no interior da associação acadêmica e de classe dos historiadores, que vem  reagindo aos esfacelamentos dos conteúdos e metodologias curriculares indicadas para o estudo da História. Como já foi anunciado, a intenção aqui é explicitar que há uma contrarreforma educacional em curso que está requerendo outra vez a retomada da discussão.


Da legislação à produção acadêmica dos historiadores debatendo os estudos sociais

Na promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) nº. 4.024 de 1961, os Estudos Sociais apareceram “como disciplina optativa na listagem relacionada pelo Conselho Federal de Educação das disciplinas a serem escolhidas pelos estabelecimentos de ensino” (SANTOS, 2011, p. 10), enquanto a História constava como componente obrigatório. Dessa flexibilidade curricular permitida pela LDB surgiram as experiências de adoção dos Estudos Sociais nos currículos, como observado em São Paulo nos Ginásios Vocacionais e Pluricurriculares, em 1962, e na Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo. Também, no final da década de 1960, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo inseriu os Estudos Sociais como disciplina “nas duas primeiras séries do ciclo colegial secundário das escolas da rede estadual” (Ato nº 24, de 28 de janeiro de 1969, Diário Oficial do Estado de São Paulo, de 29 de janeiro de 1969). 

Com a regulamentação da lei 5.692/1971, através da Resolução nº. 8/1971, a matéria História passou a ser trabalhada como Estudos Sociais no 1º grau e foi “dosada no 2º grau segundo as habilitações profissionais pretendidas pelos alunos” (Resolução CFE nº. 8, Artigo 5º, II, de 1/12/1971) para atender a profissionalização obrigatória deste nível de ensino. O projeto educacional da ditadura adotou o controle e reconfiguração dos componentes do currículo- dentre os quais a História- como foco para frear estudos teóricos fundamentais na História crítica. Conter os avanços da História como componente do processo formativo de estudantes era uma dos objetivos da reforma.

O  Iº Simpósio Nacional de Professores de História do Ensino Superior aconteceu em 1961. Os “temários” propostos estavam relacionados ao núcleo das disciplinas específicas de História, mas no IV Simpósio, ocorrido em 1967, portanto no processo de implementação da Lei 4.024 de 1961, começa a comparecer uma preocupação com o ensino e a didática. Sem fazer referências às legislações educacionais, o evento aprova uma moção solicitando que os professores participantes dos simpósios fizessem um levantamento da “situação do ensino de História, em nível médio, com a finalidade de fornecer subsídios à Associação para solicitar a intervenção do Conselho Federal de Educação (CFE) no sentido de dar maior ênfase ao ensino da História”  (ANAIS DO IV SIMPÓSIO, 1969, p. 766).

Em 1969, no Vº Simpósio,  as questões referentes ao ensino começa a comparecer por meio do artigo “A História e reforma do ensino médio em São Paulo” de autoria de José Afonso de Moraes Bueno Passos (1971) onde é  analisado a reformulação do ensino de História nesse Estado por meio da  Lei n. 10.038, de 5 de fevereiro de 1968. Ao identificar na proposta curricular a presença de termos como “área de Ciências Humanas”, “currículo comum para todos os cursos”; “A geografia e a História poderão ser integradas em Estudos Sociais”, o autor problematiza que a

“‘idéia de integração de estudos’, como hoje é intitulada, parece perfeitamente exata e conforme ao ponto de progresso atingido pela cultura humana. Na sua rápida carreira ascensional, a ciência teve de especializar-se necessariamente. Mas, com isso, por vêzes se esqueceu de que um inteiro é alguma coisa a mais que a simples soma das partes. Estas têm de ser exaustivamente estudadas, cada uma em conformidade com seus métodos, meios e finalidades próprios; mas, além da adição superposta dêsses conhecimentos, é o entrosamento orgânico dêles que gera o conhecimento do todo” (PASSOS, 1971, p. 548).

As preocupações de Passos (1971) perpassam por diversos aspectos impactados pela legislação: a relação da História escolar com a ciência de referência, sua relevância no currículo escolar e também a questão da formação e exercício profissional docente. Sua reflexão ainda dá ênfase ao lugar da História no ensino médio considerando que este deve ter como objetivo o saber científico, tecnológico e humanístico, a partir de uma integração dos estudos em consonância com as condições reais, possibilitando aos jovens adquirir uma base unificada de conhecimentos para “optar por um de seus ramos e situar-se na comunidade humana” (PASSOS, 1971, p. 548). Para tanto, defende a presença da História no currículo por ser capaz de mediar o desenvolvimento da mentalidade científica no aluno ao trabalhar com a categoria tempo, desnaturalizando a existência e a produção humana.  Reafirma que não se “pode admitir, a bem da ciência, é que se tire à História seu objeto próprio, que é a reconstrução completa do fato histórico” (PASSOS, 1971, p. 563).

Na mesma sessão coordenada, no trabalho intitulado “Algumas considerações sôbre o ensino da História no curso secundário”, José Ênio Casalecchi (1971) chama atenção para necessidade de, tendo os professores do secundário uma formação universitária, considerar a existência de uma visão científica da História na escola. Aos professores desse nível de ensino, formados pela universidade, caberia a responsabilidade de “mostrar a enorme dimensão educativa da História’” (p. 571). Constatando uma desvalorização da História, dentre as demais disciplinas do secundário, o autor afirma que “quase nada se tem sido feito no sentido de buscar a sua valorização adequada ao processo educativo” (p. 571).

Em 1971, com a Lei 5.692 a integração curricular ganhou novos contornos e objetivos, institucionalizando-se e definindo um outro momento da trajetória da História, que passa a ser prevista como Estudos Sociais, transformada agora em área de estudo obrigatória no 1º grau e como disciplina no 2º grau.

Nos Anais dos Simpósios da ANPUH, observa-se  o reflexo dessa situação quando há um aumento considerável do número de publicações a respeito do ensino de História. Em 1973 ocorre uma movimentação de resistência da ANPUH à destituição da autonomia da disciplina  História e seu esfacelamento ou tratamento como área de Estudos Sociais no ensino de 1º Grau. À medida que a reforma promovida pela Lei 5.692/1971 se consolidou e começou a ferir diretamente o conteúdo de História no currículo escolar, começa assim a desencadear  um maior posicionamento da ANPUH

Quando o tema começa a ganhar mais visibilidade na associação, outros historiadores passaram a questionar a Lei 5.692/1971, denunciando que os Estudos Sociais entraram no currículo das escolas com o discurso de “integração” das disciplinas, mas a fizeram sem articulação com as ciências de referência, provocando um esvaziamento do saber histórico. Com isso, aprofundaram a dicotomia entre ciência e ensino, bem como dificultaram o acesso a uma formação que assegurasse o domínio dos conhecimentos técnicos e intelectuais.

No IXº Simpósio Nacional de 1977, a questão ganhou espaço na programação do evento com a mesa redonda “A História e o problema dos Estudos Sociais”. Aprovou-se em assembleia tornar pública a posição assumida pela ANPUH com “a divulgação ampla, através da imprensa, das comunicações apresentadas na Mesa-Redonda sobre Estudos Sociais” (ANAIS DO IX SIMPÓSIO NACIONAL DA ANPUH, 1979, p. 104). Foram ainda definidas comissões para organizar ações de enfrentamento ao avanço dos cursos de licenciatura curta em Estudos Sociais que eram integralizados com apenas 1.200 horas.

Os Anais da década de 1970 mostram um aumento no número de trabalhos envolvendo a temática do ensino de História, embora ainda circunscritos a experiências didáticas. Dentro de um processo dialético, o campo do ensino de História, como componente curricular formativo, ganha força e se opõe às reformas educacionais. A implementação dos Estudos Sociais nos currículos nos anos de 1970 levou a um movimento de resistência a partir da articulação de um grupo de intelectuais que passaram a colocar em evidência a pauta da autonomia da História e as especificidades do conhecimento histórico no currículo escolar.

Com o processo de redemocratização, a luta contra os Estudos Sociais irá recrudescer e a produção intelectual em torno do debate sobre a importância do conhecimento histórico na escola básica, ganhará novas pautas e novos contornos, inclusive com a renovação historiográfica em andamento naquele momento.

Desconsiderando o acúmulo histórico, produto de uma memória de debates e lutas de historiadores filiados a sua associação acadêmica e de classe no enfrentamento do esfacelamento do ensino de História no currículo escolar por meio da Lei 5.692/1971, as reformas curriculares atuais, mais uma vez, retira da formação histórica o seu caráter enquanto campo específico de saber, diluindo-o em área de conhecimento. Nesse sentido, tomando como referência a teoria da memória explicitada acima, conclui-se que o passado representado pela área de Estudos Sociais se constitui como parâmetro para a distribuição do conhecimento histórico no currículo escolar na atualidade.

Conclusões parciais

A produção acadêmica publicada nos Anais da ANPUH se constitui como uma fonte privilegiada para acompanhar o debate acerca do ensino de História no Brasil diante do avanço de políticas educacionais que colocaram em suspenso o conhecimento histórico para formação de estudantes. Observa-se uma recuperação oficial de uma memória que ratifica a relativização da importância da História na formação educacional e uma supremacia da sua compreensão como área de estudos, mais uma vez.

Referências biográficas

Ms. Sandra Regina Mendes, professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/Campus XVIII); Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMLS).

Drª. Lívia Diana Rocha Magalhães, professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMLS)

Referências bibliográficas

HALBWACHS, Maurice. Los marcos sociales de la memoria. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; Concepción; Universidade de la Concepción: Caracas; Universidade Central de Venezuela, 2004.

HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. São Paulo: Editora Centauro, 2006.

MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha. História, memória e a educação: relações consensuais e contraditórias. Revista HISTEDBR On line, Campinas n. 67, p. 165-174, mar 2016.

NADAI, Elza. Estudos Sociais no Primeiro Grau. MEC, Revista Em Aberto, Brasília, v. 7, n.32 37, 1988.

SANTOS, Beatriz Boclin Marques dos. A História e os Estudos Sociais: o Colégio Pedro II e a reforma educacional da década de 1970. SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, XXVI, 2011, São Paulo. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH 50 anos: Comemorações. São Paulo: ANPUH/SP, 2011.

 

Fontes dos anais dos simpósios nacionais de história:

CASALECCI, José Ênio. Algumas considerações sobre o ensino de História no curso secundário. Anais do Vº Simpósio Nacional dos Professores de História “Porto, rotas e comércios”, Vol. I, São Paulo, 1971, p. 571-584. [evento ocorrido em Campinas, São Paulo, de 01 a 07 de setembro de 1969].

PASSOS, Pe. José Afonso de Moraes Bueno. A História e reforma do ensino médio em São Paulo. Anais do Vº Simpósio Nacional dos Professores de História “Porto, rotas e comércios”, São Paulo, Vol. I, 1971, p. 547-570. [evento ocorrido em Campinas, São Paulo, de 01 a 07 de setembro de 1969].

 

Documentos legais

BRASIL. Senado Federal. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: nº 4024/61. Brasília: 1961.

BRASIL. Lei nº5692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. MEC. Ensino de 1º e 2º grau.

 

BRASIL. Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis n. 9.394, de 20 de novembro de 1996. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 2017.

BRASIL. Ministério da Educação/Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno (CP). Resolução nº4, de 17 de dezembro de 2018. Institui a Base Nacional Curricular na etapa do Ensino Médio (BNCC-EM), como etapa final da Educação Básica, nos termos do artigo 35 da LDB, completando o conjunto constituído pela BNCC da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, com base na resolução CNE/CP nº2/2017, fundamentada no parecer CNE/CP nº 15/2017. Brasília, 2018.

Resolução nº 8, de 1º de Dezembro de 1971. Fixa o núcleo-comum para os currículos do ensino de 1º e 2º graus, definindo-lhe objetivos e amplitude. Disponível em: https://www.scielo.br/j/reben/a/HGRfCn9wSk7XZckTQKFDYDg/?lang=pt Acesso em: 14 de julho de 2021.

Ato nº 24, de 28 de janeiro de 1969, Diário Oficial de São Paulo de 29 de janeiro de 1969. "Baixa instruções para aplicação das normas estabelecidas pela Resolução C. E . E. nº 36/68 para as duas primeiras séries do ciclo colegial secundário e normal".

2 comentários:

  1. Prezadas, bom dia!
    Parabenizo as pela pesquisa e destaco a sua relevância, sobretudo porque o ataque às ciências humanas permanece em pauta nos dias atuais.
    Pensando nas discussões e posicionamentos elaborados na década de 70, fiquei curioso por descobrir se houve algum tipo de posicionamento oficial contrário às reuniões da Anpuh ou mesmo contra a movimentação em defesa da autonomia do conhecimento histórico.

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  2. Júlio! Gratas por sua leitura e pergunta. Nos Anais da ANPUH vamos encontrar as moções contra os Estudos Sociais ainda em 1973. Em 1977 serão intensificadas as ações de enfretamento à política. Portanto, podemos considerar que são posicionamentos oficiais.

    Entretanto, identificamos que não houve a constituição de uma grande debate entre os associados sobre o processo de esvaziamento do conhecimento histórico na educação (hoje denominada) básica, ficando a preocupação e o enfrentamento da política restrita a um grupo da associação, inclusive vamos identificar poucos trabalhos que trazem a discussão. Porém, é importante ressaltar, que são as articulações desse grupo que irão protagonizar o movimento a favor da retomada da autonomia curricular.

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