CURRÍCULO, ENSINO DE HISTÓRIA E LIVRO DIDÁTICO
Elizete Gomes Coelho dos Santos
A dissertação que desenvolvi ao cursar o
Mestrado Profissional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA/UFRJ) investiga
processos de construção, mobilização e operação de sentidos de tempo
reconhecidos numa coleção didática para o ensino médio do Programa Nacional de
Livros Didáticos (PNLD), edição 2015. O aporte teórico deste estudo foi
fundamentado pelos conceitos de espaço de experiência e horizonte de
expectativa, regime de historicidade, narrativa, marcas da tradição e sinais de
alternativa, construídos por Reinhart Koselleck, François Hartog, Paul Ricouer
e Cinthia Monteiro de Araujo. O recorte da obra selecionada foi inquirida
através da abordagem metodológica de análise de discurso apresentada por Norman
Fairclough (2001). Este estudo subsidiou a construção de atividades pedagógicas
sobre as reformas urbanas ocorridas no Rio de Janeiro no início do século XX.
Nesta comunicação, trago reflexões em torno de
questões curriculares e referentes a livro didático de História. A fim de
enfatizar que currículo no tempo presente não pode ser concebido como um meio
neutro de transmissão de conhecimentos ou informações (SILVA, 2013, p. 1
Currículo e Política de Currículo
Em entrevista concedida a Alice Lopes e
Elizabeth Macedo, William Pinar concebe Currículo como campo acadêmico de
pesquisa que se empenha no estudo dos sujeitos em suas relações, sendo as
teorias curriculares esforços intelectuais para compreendê-lo (LOPES; MACEDO,
2006, p.
Por volta da década de 1630, o termo currículo
foi primeiramente utilizado, porém sem se referir a um campo de estudos (LOPES;
MACEDO, 2011, p.
Na segunda metade da década de 1990, o
respectivo campo foi intensamente caracterizado por este hibridismo e pela
percepção de currículo como prática social instituidora de sentidos por
intermédio de uma ênfase analítica discursiva proveniente de abordagens
pós-estruturais, pós-modernas, pós-coloniais e pós-fundacionais. Currículo
passa a ser interpretado como arena na qual ocorrem lutas pela significação,
mobilizando disputas e negociações, que constroem discursos provisórios e
contingentes. Dentre as abordagens dessas novas teorizações curriculares estão
as relações entre conhecimento, poder (SILVA, 2015, p.
Tomaz Tadeu da Silva, ao expor currículo como
construção resultante de múltiplas narrativas, as examina pelo viés relações de
poder, reconhecendo aquelas que se colocam como favoritas e dominantes e como
tal, podem ser problematizadas e desconstruídas, artifício que assiste
determinados grupos sociais antes excluídos, podendo agora ser dotados de
representação (SILVA, 2013, p.
As teorias pós-críticas, frutos de concepções
temporais em que explodem demandas particulares e lutas de diferenças,
continuam a enfatizar que o currículo não pode ser compreendido sem uma análise
das relações de poder nas quais ele está situado; nada obstante, o poder
torna-se descentrado, isto é, difundido por toda a rede social através de lutas
de significação do mundo, que envolvem esferas para além do Estado, já que este
não é o único ator que interfere em políticas curriculares (LOPES, 2011, p.
Elizabeth Macedo e Alice Lopes, cujas análises
se inserem em teorizações pós-críticas, conceituam currículo como práticas de
produção de sentidos (LOPES; MACEDO, 2011, p.
Enfatizo que Currículo pode ser entendido como
um campo intelectual produtor de teorias, capaz de influenciar não apenas
propostas curriculares oficiais, mas também práticas pedagógicas nas escolas
(LOPES; MACEDO, 2010, p.18), como as que permeiam questões em torno de livros
didáticos. Uma vez que estes são problematizados sem se considerar questões
próprias do currículo, tende-se a leitura unívoca da busca pela obra didática
ideal e a crença de que apenas esta é capaz de sanar todos os problemas que a
escola e os professores enfrentam no cotidiano. A referida interpretação
corrobora para que as políticas de avaliação do livro didático sozinhas sejam
vistas como garantia mor da qualidade do que está sendo proposto, o que ausenta
uma análise multidimensional (LOPES, 2006, p.
Livro Didático de História
Reflexões acerca da história do livro didático
de História no Brasil implicam em considerar a construção de sua disciplina
escolar de referência, uma vez que tais processos se entrelaçam (MONTEIRO,
2010). Interpretações são diversas quanto ao surgimento da História enquanto
disciplina, tais quais as apresentadas por Annie Bruter e François Furet.
Bruter sustenta que a História, antes de ser lecionada em universidades, teria
emergido como disciplina na escola, que contou com uma “pedagogia” que já tinha
sido formulada na educação de príncipes na segunda metade do século XVII, isto
é, práticas de ensino foram elaboradas fora do âmbito propriamente escolar,
constituindo a História como matéria “ensinável” através de um processo de
longa duração (BRUTER, 2005, p. 19). Para Furet, autor que valoriza a esfera
acadêmica para se pensar a escola, a História primeiramente se constituiu como
disciplina e partir daí, tornou-se ensinável, configurando-se desta forma em
fins do século XIX, por conta de um método científico, uma determinada noção de
evolução e ainda, a seleção de um campo de estudos concomitantemente
cronológico e espacial (FURET, s/d, p.
No Brasil, História transformou-se em disciplina
escolar obrigatória em 1837, quando passou a constar no plano de estudos do
Colégio Pedro II, consistindo o ano de 1895, o momento em que a disciplina
História do Brasil alcançou autonomia daquela relacionada a História da
Civilização. O respectivo colégio, junto ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, desempenhava papel de legitimação do então Estado Nacional
imperial, ambos influenciaram na construção de uma determinada concepção de
História (MAGALHÃES, 2003, p.
Desde sua implementação, a História escolar
contou com a presença de materiais didáticos, que no início eram tradução de
obras francesas ou compêndios, por exemplo, a tradução de Resumé de l’histoire
du Brésil (1831) e o Compêndio de História do Brasil (1843), cujos autores e
tradutores não tinham o magistério como ofício principal (GASPARELLO, s/d).
Disputas ocorreram em torno do estabelecimento das disciplinas História da
Civilização e da História do Brasil nos anos 1930 e 1940, protagonizadas por
Delgado de Carvalho e Jônathas Serrano, em um cenário no qual o escolanovismo e
diferentes perspectivas de temporalidade se fizeram presentes. A título de
exemplificação, a Reforma Francisco Campos de 1931, que deu início, de forma
rígida, a um currículo seriado para o ensino secundário com frequência
obrigatória, criou a cadeira de História da Civilização, extinguindo a divisão
preexistente entre História Universal e História do Brasil. Com a reforma de
1942, ocorrida sob o comando de Gustavo Capanema, esta última adquiriu carga
horária semanal na escola equivalente a outra (REZNIK, 1998, p.
A política de materiais escolares, segundo
Flávia Caimi e Helenice Rocha (2014, p.
Maria do Carmo Martins (2014, p.
Em 1966, dispondo de financiamento originário do
acordo MEC-United States Agency for Internacional Developement, a Comissão do
Livro Técnico e do Livro Didático foi criada para assumir funções coordenativas
à sua produção, edição e distribuição (BEZERRA, 2017, p.
No contexto de redemocratização, o PNLD foi
implantado pelo Decreto nº 91.542, de 19 de agosto de 1985, que preliminarmente
ambicionava adquirir e distribuir de forma universal e gratuita, livros
didáticos para os alunos da rede pública do ensino fundamental, contudo, nos
primeiros anos, não atendeu a todos estes discentes e nem mesmo possuía
regularidade de funcionamento (CASSIANO, 2017, p.
PNLD
O PNLD, por incitar debates, críticas e
pesquisas que evidenciam não só a relevância econômica para um amplo setor
relacionado à produção de livros, que movimenta capitais interno e externo, bem
como pela função que a literatura escolar exerce na vida cultural e social
(GASPARELLO, 2013, p.
A partir de 1993, o orçamento do MEC passou a
prever recursos com a finalidade de aquisição de didáticos para alunos de
escolas públicas, mas somente dois anos depois se deu início ao processo para a
sua avaliação sistemática (BEZERRA, 2017, p.
Neste momento, as áreas de História e Geografia
não eram tratadas de forma distinta, fazendo com que a inscrição dos livros no
programa para este segmento da educação básica não ocorresse separadamente,
quadro que foi alterado a contar do PNLD 2004. Obras didáticas de História
começaram a ser examinadas em âmbito do PNLD 1999, que se referiu aos anos
finais do ensino fundamental. Nesta edição do programa, foram acrescentados os
critérios avaliatórios de pertinência e coerência metodológicas, tanto em
relação ao ensinoaprendizagem quanto à área de conhecimento específica.
Quanto às suas etapas de funcionamento, o PNLD é
executado a partir de etapas que abrangem desde a adesão das escolas que
desejam ser contempladas pelo programa até o recebimento dos livros pelas
escolas. As obras que não atendem aos critérios estabelecidos, estão excluídos
do programa, que atualmente é executado em ciclos trienais, de forma a alternar
segmentos da educação básica, incluindo a modalidade de educação de jovens e
adultos.
A distribuição para escolas públicas de obras
didáticas pelo Governo Federal através do PNLD não pode ser ignorada como forma
de acesso a estas e até mesmo como estímulo de investimentos no setor editorial
brasileiro (LUCA; MIRANDA, 2004, p.
O Decreto n° 7.084, de 27 de janeiro de 2010,
desde o seu estabelecimento até um pouco mais da metade de julho de 2017,
dispunha sobre os programas de material didático. Dentre o que ora foi
estabelecido, é assinalado a necessidade de adesão formal das escolas
interessadas, afirmando que as escolhas didáticas deveriam ser livres e
realizadas por meio do corpo docente e dirigente de cada uma das escolas
beneficiárias pelo PNLD, que para cada componente curricular, por segmento,
indicaria duas opções de obras para que uma fosse adquirida pelo Estado, em
ordem de preferência, e enviada para a respectiva escola. Apesar destes
critérios, existia a possibilidade de uma terceira opção ser entregue: a mais
escolhida em cada região.
O Decreto n° 9.099, de 18 de julho de 2017, que
passa a dispor sobre o Programa Nacional do Livro e do Material Didático,
revogando o Decreto n° 7.084, alterou a significação da sigla PNLD e
estabeleceu mudanças significativas que já seriam visíveis no edital publicado
em 31 de julho de 2017, envolto na edição do programa para o ano letivo de 2019
Pela primeira vez, a educação infantil passou a
ser incluída neste programa nacional, apesar de não haver indicativo de
acréscimo de investimento financeiro. Além de escolas públicas, o novo decreto
prevê o atendimento de instituições comunitárias, confessionais ou
filantrópicas sem fins lucrativos, conveniadas ao poder público e, a avaliação
e disponibilização de obras didáticas e literárias, de uso individual ou
coletivo, acervos para bibliotecas, obras pedagógicas, softwares e jogos
educacionais, materiais de reforço, de correção de fluxo, de formação e
destinados à gestão escolar, entre outros de apoio à prática educativa,
adquiridos pelo Estado por meio de oito etapas, que passam a funcionar em
ciclos de quatro anos e não mais, de forma trienal: inscrição, avaliação
pedagógica, habilitação, escolha, negociação, aquisição, distribuição e
monitoramento e, avaliação. Acerca da escolha dos materiais didáticos pelas
instituições escolares, o responsável pela rede de ensino poderá realizá-la,
cuja adoção será única para cada escola ou para cada grupo de escolas ou ainda,
para todas as escolas de uma mesma rede.
A avaliação de livros didáticos para o último
segmento da educação básica teve início em 2004, no âmbito do então Programa
Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio, que foi incorporado ao PNLD a
datar de 2012. Até o presente momento, quatro edições deste programa nacional
contemplaram obras de História para o ensino médio, são elas: PNLEM 2007, PNLD
2012, PNLD 2015 e PNLD 2018. Editais, que são divulgados ao menos com dois anos
de antecedência e atualmente possuem uma periodicidade trianual, anunciam não
apenas o calendário de funcionamento do PNLD, mas ainda os parâmetros
avaliativos e os critérios que norteiam os processos de aquisição, produção e
entrega dos didáticos. Deste modo, destaco que estes editais resultam de
relações de poder entre partes com interesses distintos, que contribuem para o
reconhecimento de permanências e mudanças em aspectos desta categoria de livro
(ROCHA, 2017, p.16).
Referências biográficas
Elizete Gomes Coelho dos Santos, professora da
Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ). Mestre em
Ensino de História (PROFHISTÓRIA/UFRJ).
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Segundo o texto a reforma educacional de 1931, extinguiu a divisão de História do Brasil e história da Civilização, divisão que só voltaria em 1942 com Capanema, essa decisão de excluir a história do Brasil tem relação com os escolanovistas? se sim quais?
ResponderExcluirEduval Pinheiro Lucas Xavier
Olá Eduval! A bibliografia a seguir apresenta detalhes desta transição: REZNIK, Luís. “O lugar da História do Brasil”. In: MATTOS, Ilmar Rohloff de (org.). Histórias do ensino de História no Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998.
ResponderExcluirSabemos que existes varias fontes históricas com que pode trabalhar, na sua opinião a melhor fonte a se trabalahr o ensino de história é o livro didático? ou tem a opinião que existem outras fontes históricas que são mais ricas de informações?
ResponderExcluirCleverton, fontes históricas favoráveis ao historiador são aquelas que atendem ao problema de pesquisa. O campo de estudos Ensino de História não considera apenas os livros didáticos como fontes. Em sala de aula, na educação básica, é o uso de diversas fontes com a finalidade de construir problematizações junto aos discentes.
ResponderExcluirO PNLD representou avanços na qualidade do livro didático de História?
ResponderExcluirMarisa, o PNLD representa critérios importantes para a avaliações de obras didáticas e por conta disso, o que potencialmente corroboram para a qualidade das mesmas. O PNLD possui historicidade e este aspecto necessita ser levado em consideração em nossas reflexões.
ResponderExcluirQuais as contribuições do livro didático de história para o desenvolvimento de ensino e aprendizagem ?
ResponderExcluirLivros didáticos, se problematizados, podem contribuir para uma perspectiva de ensino de História que considere valores que se relacionam com os direitos humanos e, portanto, respeitam a diversidade. Livros didáticos também são ricas fontes para serem analisadas por historiadores uma vez que é possível desenvolver análises em torno de sua historicidade e concepções de tempo, cultura etc.
ResponderExcluirComo podemos lidar com o apagamento de certos temas no livro didática como a História das Mulheres, Gênero entre outros, e como podemos reverter para que o livro didático seja mais inclusivo e não só contada por apenas uma perspectiva?
ResponderExcluirMatheus, conceitos e sujeitos visíveis e invisibilidade de outros necessitam ser refletidos a partir da historicidade dos editais do PNLD. A luta pela inclusão de múltiplos sujeitos históricos em livros didáticos não se restringe a ação de movimentos sociais e sim, necessita ser empreitada de toda a sociedade.
ResponderExcluirComo podemos lidar com a mudança da história nos livros didáticos ao decorrer do tempo? Tendo em vista que o passado não é algo fixo.
ResponderExcluirGriciéli, mudança é um conceito fundamental para o estudo de História pois implica uma das faces que necessita ser refletida quando nos atentamos para a historicidade de produções didáticas. Neste sentido, é pertinente considerar disputas e relações de poder entre os sujeitos envolvidos na produção destas obras.
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